“matrizes / fragmentos”

Por Sandra Rey

 

As últimas obras de Lurdi Blauth, em exposição, são o resultado de experimentações recentes, conduzidas por um projeto de pesquisa: uma série de impressões de pequenos objetos domésticos queimados gradualmente e prensados sobre papéis durante diferentes etapas do processo; três montagens compostas a partir de módulos de parafina contendo fragmentos de madeira queimada ou vestígios carbonizados.

Lurdi, que vem de uma prática consolidada e reconhecida como gravurista, está investigando meios de alargar os conceitos de gravação e de matriz. Esta pesquisa a está conduzindo a deslocar procedimentos e inventar formas inusitadas de fixação e de transferência de imagens.  Por exemplo, no lugar de obter formas através de incisões em placas — procedimento tradicional na xilogravura que a artista domina perfeitamente — ela tem obtido imagens ou formações surpreendentes realizando operações incendiárias sobre pedaços de madeira recortados.

Estes trabalhos nos fazem supor o desejo de criar a partir de escombros e de resíduos e nos levam a pensar que todo o fim pressupõe novos começos. O fogo consome a madeira deixando resíduos sobre a superfície. Estes resíduos carbonizados formam uma espécie de gravação nos objetos ou recortes, a partir dos quais são obtidas imagens através de impressões sobre papéis. Outro procedimento consiste em fixar os próprios pedaços de madeira queimados, ou os seus vestígios, em placas de parafina. A translucidez das placas de parafina deixa entrever desenhos inusitados a partir de sua fusão com os fragmentos carbonizados. União de materiais e superfícies, migração de técnicas, invenção de procedimentos que conduzem ao estiramento dos limites entre a gravura e o desenho.

Do trabalho operatório, que evidencia experimentação de materiais, investigação conceitual e invenção de procedimentos, a obra surge num interstício entre um pensamento estruturado e a abertura de espírito necessária, para que estruturas inconscientes possam manifestar-se através dos acasos e aleatórios que permeiam o processo. Identificamos claramente — através das operações com o fogo e formas recortadas que lembram pontas de instrumentos de caça primitivos e fragmentos de sílex —, a intenção de lidar com elementos e forças primordiais que remetem a situações de destruição e incitam instintos de ataque. No entanto, o que podemos apreciar nesses trabalhos resultantes de uma série de agressões sobre a superfície é uma espécie de leveza, sustentada pela ativação de vazios ritmados com os fragmentos carbonizados. A lição de Mira Schendel — “ativar o vazio” — interpretada com liberdade e sensibilidade.

 

Sandra Rey

Artista Plástica, Doutora em Artes e Ciências da Arte – Universidade de Paris I – Panthéon, Sorbone, França e Professora Orientadora do Mestrado e Doutorado em Poéticas Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.