Contatos Gráficos: percursos / processos / permanências

Na gravura, os meios de impressão nos remetem à presença da matriz geradora da visualidade da imagem e aos processos reprodução ou duplicação sobre um suporte. Nos indagamos: o que é uma matriz? Como reproduzir ou duplicar algo que é único? O dicionário define a matriz como o “lugar onde algo se gera ou cria; órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto; clichê; molde de metal para fundição de tipos; contramolde de gesso, cera; fonte ou origem”. [1]

Essas significações convergem para o denominador comum do termo matriz, como sendo o espaço gerador e único ou o lugar onde se efetua a concepção. E, no momento em que esse espaço tem sua superfície homogênea rompida, algo germina, torna-se permanente, transforma-se em matriz. Nesse gesto surge a imagem gravada que pode ser duplicada sobre outro suporte.

A matriz pode ser percebida em dois aspectos: de um lado, como um suporte que contém informações que remetem à marcas gravadas pelo tempo, pela memória ou apenas indícios de alguma presença, e de outro, como uma matéria indiferenciada e intacta, um campo vazio a ser gravado, tocado no intuito de corromper a sua uniformidade.

A matriz é uma possibilidade, onde se inscreve às avessas. É uma espécie de espelho, que já antes do ato de gravação, inverte o curso do pensamento. É onde a gravura realmente se define; no trabalho sobre um objeto simultaneamente virtual e concreto, guiado por uma matriz, mental. [2]

Ao longo de minha produção com a gravura sempre estiveram presentes as relações opostas de áreas gravadas e não gravadas, de vazios e cheios. No entanto, na série Sílex, a matriz não tem a atribuição de reproduzir imagens inúmeras vezes, porém duplicar pelo contato a sua unicidade, e paradoxalmente ela retoma na imagem, a sua tridimensionalidade. Nesse procedimento, percebemos que há uma inversão e reversão dos meios originais, já que a matriz não é mais um negativo que reproduz uma imagem e, também não é determinada pela gravação de vazios e cheios sobre a placa de madeira para a sua posterior reprodução ou mesmo uma tiragem múltipla. Ao contrário, a imagem-objeto surge desse contato único entre o cruzamento e o descruzamento das suas possibilidades e impossibilidades.

Por outro lado, o uso do fogo nas gravações cria ausências pela eliminação de determinadas áreas da superfície de madeira, redimensionam as oposições convencionais de gravar vazios e cheios. As incisões já não criam mais o vazio negativo que determina o cheio positivo da imagem. E o vazio não é reduzido à sua forma circunscrita entre as superfícies cheias da matriz, ao contrário, ele é provocado no sentido de gerar esvaziamentos. Em outras palavras, o vazio não é resultante de uma área determinada, porém constituído pelos esvaziamentos que se abrem entre os fragmentos provocados pelo processo de combustão. Paradoxalmente, o vazio se configura como um vazio ativo que emerge entre ausências e presenças e, as imagens se concretizam no contato entre a desestruturação e a estruturação da matéria.

Nesses trabalhos, as imagens situam-se num campo aberto de probabilidades e imprecisões, ao mesmo tempo em que há uma certa previsibilidade definida pelas materialidades envolvidas, como a madeira e a parafina. De um lado, cada imagem-objeto se constitui a partir dessas inter-relações entre os materiais, tendo um resultado previsível e de outro, há sempre algo de imprevisível, revelando-se como imagem única. Desse modo, a matriz abandona a sua função reprodutora· e seu estado ausente, para tornar-se permanente e única.

Em algumas imagens, os fragmentos carbonizados estão ausentes, permanecendo apenas marcas e ou vestígios de um corpo ausente. Em outras, estão configurados apenas os vestígios de fuligem que emergem dos desenhos criados intencionalmente com o carbono da matéria destruída pelo fogo. São imagens que duplicam os traços deixados pela fugacidade e a fluidez da fumaça e, paradoxalmente são capturados no instante do seu movimento, tornando-se permanentes. Incorpora-se um estado intermediário que nos remetem às provas de estado da gravura. Essas provas de estado, no procedimento tradicional apresentam esse caráter de unicidade, referindo-se às provas preliminares que apresentam alterações na matriz, antes da solução final da imagem. Poderíamos dizer que é um estágio de passagem entre o anterior e o definitivo que as imagens são condensadas. Em alguns trabalhos, como nas Luas Negras, por exemplo, ocorre o desaparecimento da matriz original, sinalizando para um vir a ser  e, talvez, ao retorno ao ponto zero da gravura.

Lurdi Blauth Abril/maio 2008 

 

[1] NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO. 2ª. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. P. 1105.

[2] MARCO BUTI. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. s/p.

  • Refiro-me ao procedimento de tiragem – impressão de várias imagens de uma mesma matriz.